IBSA – Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada

ESCOLA NÃO É ǪUARTEL

(Artigo publicado na revista Carta Capital, edição nº1313 de 5 de junho de 2024)

Cesar Callegari
Clara Cecchini

Educação e repressão não combinam. As cenas de violência da polícia militar contra estudantes que protestavam contra a aprovação da lei instituindo o programa de escolas militarizadas no Estado de São Paulo revelam um mau começo e um fim preocupante para essa iniciativa. Policiais espancando e prendendo jovens em pleno exercício do direito de manifestar sua opinião é algo intolerável em qualquer tempo ou lugar, muito menos numa Casa de Leis – e jamais no ambiente educacional.

A Lei, proposta pelo Governador Tarcísio de Freitas, foi aprovada pela Assembleia Legislativa no último 21 de maio. Prevê a presença de policiais militares da reserva em escolas públicas para cuidar de temas relacionados a disciplina, organização, segurança e de programas extracurriculares, sobretudo aqueles voltados ao civismo e aos valores da família tradicional e da pátria.

Dados levantados pela RePME – Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização na Educação, em cooperação com outras entidades, mostram que no Brasil existem cerca de 834 escolas estaduais e municipais funcionando nesse modelo que ganhou um grande impulso no governo Jair Bolsonaro com a instituição do PECIM – programa de escolas cívico-militares. Com o início do Governo Lula esse programa foi acertadamente descontinuado. Ainda falta uma avaliação mais completa sobre os resultados desse tipo de organização escolar que, aliás, vem sendo implementado por alguns estados e municípios há mais tempo, inclusive por administrações do campo progressista. Contudo, não há evidências de que a militarização do ensino influencie positivamente o desempenho dos alunos. Além disso, esse formato não tem amparo legal em nenhum dos dispositivos que regem a educação brasileira.

Embora haja um amplo consenso contra o modelo cívico-militar entre educadores e especialistas que estudam o tema, é espantoso que a ideia goze da simpatia de muitas famílias e até de alguns professores. Espantoso, mas compreensível: com dificuldades de assegurar um adequado suporte educacional doméstico e diante de um cenário cada vez mais grave de violência e desinformação, alguns pais e responsáveis acreditam que a escola tem que ser mais rigorosa e “colocar os meninos na linha”. Da mesma forma, alguns professores, obrigados a lecionar para classes superlotadas e sem condições mínimas para a realização de seu trabalho, supõem que um regime disciplinar mais rígido e punitivo lhes poderia facilitar a vida. O que muitos não se dão conta é que a presença de agentes policiais na organização escolar contamina as bases do ambiente educacional com um outro tipo de cultura, com outros valores, na contramão de tudo o que se deseja e se espera de uma educação emancipatória para a cidadania contemporânea.

Policiais são treinados para a contenção e para a repressão. São o braço do Estado para o uso da força. Sua visão de organização é a tropa, onde não se admite a divergência e se preconiza a obediência cega no cumprimento de ordens. Escolas e seus profissionais, ao contrário, existem para expandir horizontes, proporcionar experimentações, estimular questionamentos, fomentar a criatividade e o espírito crítico.

A forma de ver o mundo aprendida na escola passa a fazer parte da vida presente e futura dos estudantes e da comunidade. A educação pública é um espaço de construção de projeto de sociedade, e dar as boas-vindas à polícia denota uma escolha que vai muito além da solução de questões práticas do cotidiano escolar. É uma escolha retrógrada, não apenas no campo dos valores, como também absolutamente anacrônica ao que os estudantes encontrarão na sua trajetória cidadã e na sua vida profissional.

Além de ser incompatível à aspiração de uma educação para a cidadania, a defesa da visão militar nas escolas pelo argumento da preparação para o mundo do trabalho é insustentável. As discussões atuais sobre cultura organizacional e competências profissionais vêm questionando a própria noção de eficiência como regra máxima, bem como a estrutura mecanicista das relações de trabalho e das organizações. Com todo o avanço tecnológico, o lugar do trabalho humano está em transformação. Mas já é sabido que para o profissional de hoje e do futuro não basta seguir o manual, cumprir ordens, obedecer. É preciso questionar o status quo e criar novas formas de trabalhar – nas organizações públicas e privadas. Até mesmo empresas tradicionais estão investindo recursos e energia para incorporar nas suas culturas a abertura ao erro, a segurança psicológica, a vulnerabilidade e a empatia. Menos hierarquia, menos comando e controle, mais ousadia e criatividade. Não porque é bom ou bonito, mas porque é essencial para a sua sobrevivência neste período de transição tecnológica. Algumas organizações já perceberam que para construir o novo precisam de um ambiente que acolha o não saber, a dúvida e crie dinâmicas de colaboração efetiva na diversidade – a antítese da visão militar.

Urgência ainda maior é a revisão as atuais bases de produção e consumo que levaram a humanidade à situação calamitosa de destruição do planeta. Todas as gerações, as vivas e as futuras, lidarão com as consequências de um modelo exploratório nocivo para natureza e para as pessoas. Nos próximos anos, será necessário fortalecer uma forma mais solidária de viver juntos, defender os direitos humanos e lutar contra a degradação ambiental. Serão necessários novos hábitos, novos desejos e novos parâmetros de desenvolvimento. Uma reinvenção completa da sociedade para a qual são indispensáveis a imaginação e a energia renovadora da juventude. Portanto, é absurdo permitir que a educação se molde à lógica de uma instituição que se fundamenta na existência da violência e do conflito. Cooperação, visão sistêmica e compromisso coletivo não se prestam a palavras de ordem – precisam ser vivenciadas genuinamente para serem incorporadas à forma de viver. Vivenciadas desde a escola.

Disciplina e segurança não dependem de hierarquia e obediência. Não é assim. Reduzir a disciplina escolar à visão militarista tira dos estudantes a oportunidade de desenvolver seu verdadeiro sentido. É na interação entre as crianças e jovens, e deles com seus professores e com a comunidade, que se constrói o clima de segurança e respeito coletivo – e não pela repressão. Professores bem-preparados e em condições de trabalho adequadas são capazes de encantar seus alunos, fomentar o entusiasmo em aprender. Assim, a busca do aprimoramento pessoal ganha sentido. A disciplina pela adesão consciente, e não pelo medo. Escolas mais seguras são aquelas onde impera a gestão democrática e participativa, permeável ao contexto e às questões reais da comunidade. Com liberdade e responsabilidade na manifestação de ideias, crenças, argumentos, corpos e sentimentos.

Um ambiente de aprendizado ditado pelos valores do militarismo pode ter consequências nefastas sobre a forma como cada estudante estabelece sua relação com o aprendizado ao longo da vida. O caminho é outro. Professores de ciências e de matemática forjam a curiosidade, o pensamento analítico, e ensinam que a dúvida e o erro fazem parte da construção do conhecimento. Nas aulas de artes e de educação física se desenvolvem as potências criativas, de cooperação, bem como as noções de limites e possibilidades individuais e coletivas. É nas aulas de sociologia, história, filosofia, geografia e literatura, que professores – e não soldados – ajudam a formar o pensamento crítico e a consciência sobre sociedade, país, nação e pátria. Nesse conjunto articulado, estão as oportunidades de desenvolvimento das habilidades necessárias ao presente e ao futuro.

Enfim, escola é, e deve continuar sendo, um campo de liberdade onde professores e seus alunos não podem ser tratados como tropa marchando em ordem unida. Boas  escolas  formam  rebeldes  com  causa.  E  isso  é  bom.

Cesar Callegari é sociólogo. Foi Secretário de Educação Básica do MEC (governo Dilma), Secretário da Educação da Cidade de São Paulo (gestão Haddad) e membro do Conselho Nacional de Educação. Clara Cecchini é especialista em cultura e aprendizagem organizacional. Coautora do livro Aprendiz Ágil (Arquipélago Editorial, 2020) e fundadora do Clube da Escrita CC.

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