IBSA – Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada

A BNCC NO CNE: porque foi necessário “virar a mesa”

2019

Cesar Callegari

No início do mês de julho de 2018, tomei a decisão de deixar a presidência da Comissão da Base Nacional Comum Curricular do Conselho Nacional de Educação, após mais de dois anos de um mandato marcado pela aprovação da BNCC relativa à educação infantil e ao ensino fundamental e pelo início dos debates sobre a proposta relativa ao ensino médio. A renúncia foi uma atitude amadurecida e pensada como a melhor maneira de continuar contribuindo com o debate sobre esse tema tão importante para a educação brasileira. Acompanhando minha decisão de sair, enviei aos meus colegas conselheiros uma carta apresentando um sintético balanço do trabalho até então realizado, os desafios a serem enfrentados pelo CNE quanto à implementação da Base e, principalmente, esclarecendo minhas posições sobre a reforma do ensino médio pretendida pelo governo e a respectiva BNCC elaborada pelo MEC (*).

 Embora de modo não intencional, a carta extrapolou a órbita do CNE e acabou tendo alguma repercussão entre os integrantes da comunidade educacional brasileira. É possível que tenha até estimulado um posicionamento mais enfático de algumas entidades nacionais que já vinham se opondo a essas iniciativas do governo (**), além de gerar uma pauta de discussões internas no próprio Conselho.

Por ter se tornado um documento público que integra as atas oficiais do CNE de julho de 2018, parece ser interessante que o teor dessa carta venha a compor a presente publicação como contribuição para aqueles que queiram melhor compreender as circunstâncias mediante as quais o Brasil enfrentou e enfrentará a inédita tarefa de elaboração e implementação de uma BNCC. Desde as suas origens, até a sua inclusão na Lei do Plano Nacional de Educação de 2014, a Base sempre foi pensada como uma enunciação dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento escolar das crianças jovens e adultos brasileiros. Portanto, também pensada como expressão de deveres do Estado e da Sociedade para com a educação. Uma base que viesse a favorecer a equidade, com reflexos positivos na construção dos currículos escolares, na formação de professores, na produção de materiais didáticos, nas avalições e na própria articulação de um sistema nacional de educação. Os próximos tempos decerto revelarão se o que terá sido produzido como BNCC bem como o posicionamento dos diferentes atores nesse processo terão representado, de fato, uma efetiva contribuição para uma educação de qualidade como direito de todos os brasileiros.

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(*) Na sua edição de 3/7/18, o jornal Folha de São Paulo publicou um artigo de minha autoria sob o título “Revogar a Lei do Ensino Médio” registrando essas posições.

(**) Ainda em julho de 2018 se pronunciaram pela revogação da Lei do Ensino Médio e pela retirada da proposta de BNCC elaborada pelo MEC, entre outras, as seguintes entidades: Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC), Associação Brasileira de Antropologia, Sociedade Brasileira de Sociologia, Sociedade Brasileira de Física, Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, UNE e UBES. Na audiência pública sobre a BNCC realizada em 5/07/2018 em Fortaleza, Ceará, várias manifestações fizeram referências expressas à carta. Em junho de 2018, documento firmado por várias entidades, entre elas CNTE, ANPED, ANPAE foi encaminhado ao CNE apresentando posição contrária à proposta de BNCC do ensino médio.  A audiência pública programada para a Região Sudeste que seria realizada na Cidade de São Paulo em 8/6/2018 teve que ser cancelada em função dos protestos de entidades estudantis e sindicatos de professores que ocuparam o local exigindo a revogação da Lei do Ensino Médio e a rejeição da BNCC.

Carta aos conselheiros do Conselho Nacional de Educação

                                                                                                                      Brasília, 29 de junho de 2018

Colegas conselheiras e conselheiros membros do Conselho Nacional de Educação.

Por quase dois anos venho tendo o privilégio de contar com a sua confiança na presidência da Comissão Bicameral do CNE encarregada da Base Nacional Comum Curricular.

Em meus três mandatos como membro deste Conselho, este foi o período de maiores intensidades, marcado pelos desafios relacionados às discussões sobre as propostas de BNCC elaboradas pelo MEC.

Neste momento, por respeito e consideração a cada um de vocês, sinto-me no dever de compartilhar reflexões e posicionamentos e, ao final, apresentar propostas e comunicar decisão que, espero, possam merecer a sua atenção e compreensão.

Na presidência da Comissão procurei cumprir minhas responsabilidades com o devido respeito e apreço aos colegas e a necessária atenção a todos aqueles que nutriram as melhores e maiores expectativas em relação ao CNE como órgão de Estado sensível aos anseios da sociedade.

Em que pesem todas as circunstâncias, tensões e conflitos políticos, econômicos e sociais que vêm marcando a atual quadra da história brasileira, pode ser considerada uma grande proeza que o CNE tenha conseguido conduzir, de forma democrática e produtiva, a tarefa de elaboração da norma instituidora da BNCC relativa ao Ensino Fundamental e à Educação Infantil. Atravessamos mares revoltos.  Seja no ambiente interno, seja no relacionamento com o MEC, seja ainda nas nossas relações com diferentes grupos e segmentos da sociedade. Soubemos organizar e realizar audiências públicas com a mais ampla liberdade de manifestação, assim como participamos de reuniões de trabalho em todas as regiões do Brasil. Com espírito público resolvemos desavenças entre nós, interagimos com inúmeras entidades, grupos e pessoas interessadas no tema e analisamos centenas de documentos do mais variado teor. Fomos atacados e fomos apoiados. Fomos alvo de críticas, mas também destinatários de numerosas e valiosas contribuições. E, ao final, logramos êxito. Por maioria de votos e também pela qualidade da participação daquelas conselheiras que, por votos e ideias, se opuseram à aprovação da BNCC defendendo outras visões, o CNE aprovou o Parecer CNE/CP nº15/2017 e a Resolução CNE/CP nº 2/2017. Pela primeira vez na história, o Brasil passa a contar com uma Base Nacional definidora dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, jovens e adultos, a BNCC. Votei a favor do parecer dos relatores aprovando a Base e declarei em voto as minhas não poucas restrições (***).

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(***) Declaração de voto do Conselheiro Cesar Callegari no Parecer CNE nº 15/2017: Embora com restrições abaixo relacionadas, voto favorável ao parecer e ao projeto de resolução. Desde a Conferência Nacional de Educação de 2010 e, depois, nas discussões que precederam a Lei do Plano Nacional de Educação (2014), venho defendendo a construção de uma Base Nacional Comum Curricular como expressão dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, jovens e adultos brasileiros. Uma BNCC que pudesse contribuir para a equidade num país com dramáticas desigualdades educacionais. Fui autor ou participei da elaboração de várias diretrizes curriculares nacionais vigentes e, em todas elas, há referências explícitas à necessidade de uma BNCC. Ainda no governo Dilma, coordenei a elaboração do primeiro documento com proposta de uma Base Nacional Curricular para o ciclo de alfabetização, entregue ao CNE. E, daí em diante, participei de todos os esforços de elaboração, desde a primeira versão, há 3 anos, até os seminários que deram origem à terceira versão encaminhada ao CNE pelo MEC. Seria, pois, uma incoerência negar minha participação ativa na etapa final. No CNE, fui eleito por meus pares para presidir a comissão Bicameral da BNCC e, nessa condição, fui o principal responsável por todo o processo de discussão da Base, garantindo a participação e a escuta dos mais amplos segmentos da comunidade educacional brasileira. Realizamos 5 audiências públicas nacionais no âmbito das quais foram inúmeras e valiosas as contribuições recebidas da sociedade, além das próprias contribuições dos colegas conselheiros, o que permitiu propor significativas mudanças e aperfeiçoamentos no texto original produzido pelo MEC. (continua)

Votei a favor não só por ter coordenado os trabalhos da Comissão, apoiado as tarefas dos relatores e negociado avanços com o MEC; votei favorável também por ter concluído que, apesar de tudo, o resultado final contém mais qualidades que defeitos e que poderá representar uma efetiva contribuição para a Educação em nosso país.

De todo modo, já temos uma BNCC. Incompleta e certamente imperfeita, é verdade. Uma norma que sempre estará sujeita a aperfeiçoamentos e complementações. Um referencial que os educadores brasileiros, seus alunos e suas famílias haverão de analisar, interpretar, discutir e sobre ele criar. Uma obra necessariamente inacabada porque sempre sujeita a modificações. Caberá ao CNE responder em produção normativa complementar a todas as questões que venham a ser levantadas quando a BNCC começar a chegar no “chão da escola”. E, mais importante: cabe ao CNE zelar pelo respeito à norma, fazendo com que sejam observados os dispositivos que asseguram a autonomia das escolas, redes e sistemas de ensino na elaboração e implementação de seus currículos e projetos pedagógicos. Como bem definimos, BNCC não é currículo. O CNE deve ser vigilante contra tentativas de reduzi-la à condição de currículo único e currículo mínimo como lamentavelmente parece já estar acontecendo.

Como sabem, nunca deixei de ter minhas próprias posições e convicções, como também minhas dúvidas e incertezas. Todavia, na presidência de um colegiado tão qualificado e plural como é a Comissão da BNCC, não poucas vezes preferi silenciar para propiciar as falas e as escutas, conciliar quando o impulso era tomar partido e disputar, insistir e animar mesmo quando a pressões maiores tentavam obstruir ou desqualificar o trabalho. A presidência de uma Comissão como a nossa requer conduta firme, sensível, imparcial e democrática. Assim, com a participação de todos e a indispensável colaboração da equipe técnica do CNE, avançamos.

No entanto, o quadro agora é outro. Temos pela frente a BNCC do ensino médio elaborada pelo MEC. Sobre ela, tenho severas críticas que considero honesto explicitar e ponderações que julgo necessário fazer.

Desde abril deste ano quando o Ministério encaminhou sua proposta de BNCC ao CNE, venho realizando estudos e reflexões sobre o tema. Procurando conhecer detalhadamente a proposta, atento às análises e manifestações que vêm sendo produzidas por diferentes atores do campo educacional brasileiro. Muitas dessas contribuições e posicionamentos começam a chegar ao CNE por meio de documentos, nos diálogos com as entidades com quem começamos a conversar, bem como resultantes das audiências públicas que já conseguimos realizar.

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(*** continuação) O CNE se conduziu como órgão de Estado e não de Governo e, na medida das possibilidades e limites conjunturais, produziu importantes contribuições à forma final da BNCC. Fomos capazes de conduzir um processo que manteve a Educação acima de disputas menores, num país dividido, turbulento e em crise institucional, tudo isso em meio às tensões, conflitos e asperezas próprias a um tema (currículo) sempre apaixonante e controverso. Honramos as nossas responsabilidades. Pois, lembrando Guimarães Rosa, ‘melhor faz quem luta com as mãos do que quem abandona as mãos para trás. O voto favorável se justifica, também, a partir da aprovação de várias emendas e propostas por mim apresentadas, entre elas: a restauração da concepção de educação infantil presente na versão 2 da BNCC, conforme exigiam os principais movimentos brasileiros pela educação infantil; a prevalência dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento sobre o conceito de competências (que é uma concepção mais utilitária do conhecimento); a caracterização do documento do MEC como documento técnico complementar, portanto autoral como deve ser, que se vincula à norma na medida em que respeita os termos, conceitos e dispositivos estabelecidos pelo CNE; a explicitação, no parecer, projeto de resolução e em todas as partes e componentes do documento técnico da BNCC, que a organização dos objetivos e habilidades nele indicada não deve ser tomada como modelo obrigatório, garantindo-se, assim, a autonomia das escolas e seus professores e sua condição de construir os seus currículos a partir de uma leitura crítica e criativa da Base; a aprovação de todas as emendas relacionadas à inclusão da temática latino-americana por mim apresentadas, antes praticamente ausente da proposta do MEC; do mesmo modo, apoiei outras tantas propostas que foram aprovadas, como a inclusão das orientações sobre educação escolar indígena e quilombola, as referências às novas tecnologias e a reformulação total da proposta de língua portuguesa. (continua)

A primeira conclusão a que chego é que não é possível separar a discussão da BNCC da discussão da Lei nº 13415, de fevereiro de 2017, que teve origem em Medida Provisória do Presidente da República e estabeleceu os fundamentos do que chamam de “reforma do ensino médio”. Uma coisa está intrinsecamente ligada à outra. A própria Lei é clara ao estabelecer que é a BNCC que lhe dará “corpo e alma”. Problemas da Lei contaminam a BNCC. Problemas da Base incidirão sobre a Lei.

A meu ver, a proposta de BNCC elaborada pelo MEC evidencia os problemas contidos na referida Lei, aprofunda-os e não os supera. Ela sublinha o defeito de origem: a separação do ensino médio do conjunto da educação básica na concepção de uma BNCC. Eu e outros conselheiros insistimos nessa crítica desde o início do processo. Eis que, materializando nossos piores temores, a proposta do MEC para o ensino médio não só destoa, mas contradiz em grande medida o que foi definido na BNCC das etapas educacionais anteriores e é radicalmente distinta do que vinha sendo cogitado nas versões primeiras. Tinham, afinal, razão os que temiam rupturas e fragmentação da educação básica.

Além desse ponto, sobre a Lei nº 13415 e sobre a BNCC do MEC sinto-me no dever de explicitar ainda outras posições e opiniões, algumas delas já externadas em nossos debates internos. É preciso deixar as coisas claras por dever de lealdade aos colegas do CNE e em respeito a todos aqueles a quem devo satisfação sobre meus atos como Conselheiro.

Começo por concordar que a elaboração de uma Base Nacional que defina direitos de aprendizagem de crianças jovens e adultos e que inspire a elaboração dos currículos é estratégica (necessária, embora não suficiente) para o avanço da Educação no Brasil. Assim dispõe a Lei do Plano Nacional de Educação. Aos direitos de aprendizagem devem corresponder os deveres do Estado e da Sociedade, dos governos, das escolas e das famílias.

Portanto, desde o início, a BNCC foi imaginada para ser uma base para a equidade que ajudasse a elevar a qualidade da educação brasileira.  Contudo, na contramão de tudo o que se pensou, a nova Lei do ensino médio estabelece que esses direitos serão reduzidos e limitados ao que puder ser desenvolvido em, no máximo, 1800 horas. Ou seja: apenas ao que couber em cerca de 60% da atual carga horária das escolas. Pergunta-se, então: o que vai ficar de fora? Quanto de língua portuguesa, de biologia, de filosofia, de matemática, química, história, geografia, física, arte, sociologia, língua estrangeira, educação física? Quantos conhecimentos serão excluídos do campo

dos direitos e obrigações e abandonados no terreno das incertezas, dependendo de condições, em geral precárias, e das vontades por vezes poucas? E mais: uma Base reduzida pode levar ao

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(***  continuação)  Ressalto, contudo, minhas restrições: a não inclusão do ensino médio nessa proposta da BNCC, que se refere apenas ao ensino fundamental e à educação infantil, prejudicando uma visão do todo da educação básica; a exclusão das referências a gênero e orientação sexual, sendo que o MEC e a maioria dos membros do CNE acabaram cedendo às pressões das milícias fundamentalistas e ultraconservadoras que se posicionaram contra a existência dessas questões na BNCC (apresentei emendas para a sua reincorporação ao texto, infelizmente rejeitadas); a não aceitação de minhas propostas de sugestões de revisão da proposta de História nos anos finais do ensino fundamental, que considero uma concepção meramente factual, linear, cronológica, descontextualizada e alienante; a fixação de que a alfabetização deve se dar no segundo ano do ensino fundamental, já que essa decisão cabe às escolas e ao seu projeto pedagógico e, finalmente, o prazo excessivamente longo, de 7 anos, para a revisão da BNCC que, por ser a primeira, naturalmente contem imperfeições e incompletude .Contudo, como é possível notar nos textos finalmente aprovados, foi possível negociar inclusões que, se não resolvem, pelo menos mitigam a alguns desses problemas. A proposta de BNCC aprovada está longe de ser a ideal, sabemos. Contudo, trata-se de um passo inicial da maior importância. Estamos tendo a oportunidade de enunciar direitos, e, a partir deles,

apontar deveres do Estado e da sociedade para com a educação de qualidade como requisito para uma sociedade democrática, desenvolvida e socialmente justa.  Destaco que, com a aprovação da BNCC, o principal trabalho começa agora, nas escolas. São os educadores que haverão de tomar a BNCC como uma referência para a elaboração crítica, criativa e participativa de seus currículos e propostas pedagógicas. É com eles e por eles que a BNCC ganhará significado e concretude. É nesse processo, no chão da escola e na consciência dos professores, que ela irá adquirir a sua identidade na história da educação brasileira.

estreitamento do escopo das avaliações e exames nacionais que já consolidaram um papel marcante no nosso sistema educacional. E então? Exames como o ENEM também serão reduzidos, a indicar que, agora, muito menos será garantido e exigido?  Incapazes de oferecer educação de qualidade, baixam a régua, rebaixam o horizonte. Essa, a mensagem que se passa para a sociedade.

Como se pode constatar no documento preparado pelo MEC, com exceção de língua portuguesa e matemática (que são importantes, mas não as únicas), na sua BNCC desaparece a menção às demais disciplinas cujos conteúdos passam a ficar diluídos no que se chama de áreas do conhecimento. Sem que fique minimamente claro o que deve ser garantido nessas áreas. Contudo, sabemos que os direitos de aprendizagem devem expressar a capacidade do estudante de conhecer não só conteúdos, mas também de estabelecer relações e pensar sobre eles de forma crítica e criativa. Isso só é possível com referenciais teóricos e conceituais. Ao abandonar a atenção aos domínios conceituais próprios das diferentes disciplinas, a proposta do MEC não só dificulta uma visão interdisciplinar e contextualizada do mundo, mas pode levar à formação de uma geração de jovens pouco qualificados, acríticos, manipuláveis, incapazes de criar e condenados aos trabalhos mais simples e entediantes, cada vez mais raros e mal remunerados. É isso que se quer para o país? É evidente que mesmo que se mantenha a ideia de organização por áreas, torna-se imprescindível detalhar os seus elementos constituintes para além das platitudes e generalidades apresentadas na proposta do MEC.

O atual governo diz que o “novo ensino médio” já teria sido aprovado pela maioria dos jovens. Não é verdade. Nenhuma mudança chegou às escolas e talvez para a maioria elas nunca cheguem.  Alardeia a oferta de um leque de opções para serem escolhidas pelos estudantes, mas na sua BNCC não indica absolutamente nada sobre o que esses “itinerários formativos” devem assegurar. Se defendemos uma Base como expressão dos direitos de aprendizagem, devemos enunciá-los para todo o ensino médio e não apenas para uma parte dele. Se mantida a arquitetura proposta pela Lei, que articula um núcleo comum com itinerários diversificados, precisa haver BNCC tanto para a parte comum nuclear quanto para cada um dos itinerários que compõem a parte diversificada. Deverá ser sobre esse conjunto integralizado na BNCC que os currículos e projetos pedagógicos serão criados, contextualizados e implementados. Trata-se, pois, de um grande e complexo trabalho ainda por fazer, envolvendo necessariamente uma ampla participação de todos os setores interessados. Obviamente, não cabe ao CNE fazer o que o MEC não quis ou não foi capaz de realizar. 

Por outro lado, como falar de opções diante das baixas de condições de funcionamento das escolas brasileiras? Hoje, na maioria das unidades, pouco pode ser assegurado. A precariedade é generalizada. Em muitos colégios não há professores suficientes, não há laboratórios, não há internet e sobram alunos por sala de aula. Mais da metade dos municípios brasileiros tem apenas uma escola de ensino médio e nessa escola é comum não haver condições adequadas de funcionamento. Pergunto: como uma proposta de reforma do ensino médio pode ser apresentada sem levar em consideração seus limites e possibilidades? Onde está o necessário plano de ação para enfrentar esses problemas? Pois tanto no âmbito da Lei como no que se refere à BNCC, nada se diz sobre isso. Portanto, sem conteúdo e sem condições, não é honesto dizer que os jovens terão opções. Seria bom que tivessem. Infelizmente, para a maioria, esta miragem poderá significar ainda mais frustração e mais exclusão. Provavelmente, um maior aprofundamento das nossas atuais desigualdades.

A nova Lei abre o ensino médio para que ele seja oferecido a distância. Nesse simulacro de educação, pacotes EAD poderão substituir professores e dispensar laboratórios e bibliotecas. Pior: poderão desintegrar o território de encontros, afetos e descobertas coletivas constituído pela escola, seus estudantes e seus profissionais. Isso é muito grave! Não será isolado atrás de uma tela de computador que o jovem brasileiro vai desenvolver valores como liberdade, solidariedade, respeito à diversidade, trabalho colaborativo, o apreço à democracia à justiça e à paz. Na escola se aprende muitas coisas que não estão nos livros: estão nas relações presencias entre os estudantes e deles com seus professores e a comunidade. As novas tecnologias estão aí, mas elas devem ser utilizadas a favor da escola e não em substituição a ela. A escola precisa ser protegida e valorizada, não ameaçada. Na minha visão, a não ser em casos excepcionais já regulamentados, a participação da modalidade a distância na oferta do ensino médio não deve ser admitida, como, aliás, já orientam as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para essa etapa.

Destaco esses problemas para não discorrer sobre outros, como, por exemplo, o dispositivo da Lei que permite que recursos públicos da escola pública passem a ser compartilhados por instituições privadas; ou a possibilidade de que profissionais práticos com notório saber e não licenciados possam ministrar aulas na educação básica. Mas não vou me alongar.

Colegas do Conselho. O fato é que sobre todos esses problemas, não posso e não vou me calar. Tenho toda uma vida dedicada à causa da Educação marcada pela defesa de posições claras. Todavia, também cumpre propor. Lembrando Paulo Freire: não basta denunciar, também é necessário anunciar.

No que concerne à Lei nº 13415 propriamente dita, penso que ela deva ser revogada. E, a partir disso, em novas bases sociais, politicas e administrativas advindas das eleições de outubro, iniciar um amplo debate nacional com participação ativa deste CNE.

Quanto à proposta de BNCC elaborada pelo MEC, proponho que ela seja rejeitada e devolvida à origem. Seus problemas são insanáveis no âmbito do CNE. Ela precisa ser refeita.

Quanto aos trabalhos do CNE e, particularmente, os da Comissão Bicameral da BNCC, proponho uma imediata revisão da estratégia de estudos e debates, com a suspensão do ciclo de audiências públicas e a organização de uma ampla agenda de diálogos em profundidade com os diferentes setores da educação nacional. Mais do que nunca, o CNE deve assumir seu papel de Órgão de Estado, guardião dos interesses educacionais da Nação e protetor da Educação contra os males das descontinuidades e dos oportunismos.

O CNE deve deixar claro que a discussão da BNCC e da reforma do ensino médio não vai se subordinar ao calendário político e administrativo de quem quer que seja. O tema deve continuar a receber sua atenção, mas nada deve ser concluído neste ano. Isso inclui as propostas de revisão das Diretrizes Curriculares do Ensino Médio. Rodadas mais amplas e audiências públicas deverão ser retomadas no ano que vem com os novos atores referendados pelo processo eleitoral democrático que se avizinha. E, sobretudo, com a participação dos professores, dos estudantes e dos demais integrantes do campo educacional brasileiro. As manifestações que nos levaram a cancelar a audiência pública da Região Sudeste que seria realizada na Cidade de São Paulo no começo de junho deixam um recado claro: a reforma do ensino médio e a respectiva BNCC precisam ser mais amplamente discutidas. Por serem urgentes, as mudanças e melhorias na educação brasileira exigem cuidado, respeito e ousadia.

Ao defender essas posições e essas propostas perante o nosso colegiado e perante a sociedade, entendo não ser mais adequada a minha permanência à frente da Comissão Bicameral da BNCC. A presidência de um colegiado exige um esforço de imparcialidade que já não posso oferecer. Mais uma vez, agradeço por sua confiança e colaboração. Da Comissão pretendo continuar participando até o final de meu mandato de conselheiro em outubro próximo. Vou contribuir com seus trabalhos no melhor dos meus esforços em defesa de uma Educação de boa qualidade como direito de todos.

Encerro, agradecendo pela atenção dispensada a essa minha longa manifestação E, respeitosamente, solicito que sobre seu teor, especialmente sobre as propostas por mim apresentadas, as colegas conselheiras e os colegas conselheiros também se pronunciem.

Recebam as minhas cordiais saudações.

Cesar Callegari

Cesar Callegari é sociólogo e exerce o seu terceiro mandato como membro do Conselho Nacional de Educação. Foi Secretário da Educação do Município de São Paulo, Secretário da Educação Básica do MEC, Secretário Executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia e Deputado Estadual por dois mandatos em São Paulo. É presidente do Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada – IBSA.

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