IBSA – Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada

A DITADURA E DUAS HISTÓRIAS DE CORAGEM

Publicado – Facebook – 02-04-19

Na noite de 22 de setembro de 1977 fui preso pela ditadura. Eu e centenas de estudantes da PUC-SP. Comandados pelo Coronel Erasmo Dias, eles nos prenderam e nos levaram para o Batalhão Tobias de Aguiar, sede da ROTA. Lá, fomos ameaçados, humilhados, interrogados e fichados pelos agentes do DOPS e do SNI.

Apesar do risco real de sofrer o que outros ativistas vinham sofrendo nos calabouços da repressão, todos nós acabamos soltos em poucos dias. A PUC havia sido parcialmente destruída por bombas, soldados e cães.

Nosso “crime”: LUTAR PELAS LIBERDADES DEMOCRÁTICAS. E tentar reorganizar a UNE, que havia sido banida pelos militares.

Quatro dias depois da minha prisão e fichamento, a Fundação CENAFOR onde trabalhava como técnico em pesquisa, decidiu me demitir imediatamente. O CENAFOR era um órgão do governo federal dedicado à formação profissional, tema considerado estratégico pela ditadura. Era dirigido por militares da aeronáutica, mas tinha um corpo técnico formado por profissionais progressistas. A cúpula do órgão fora informada que um dos seus funcionários ( eu) havia sido detido e fichado como “perigoso agitador comunista”. Meu chefe, o professor Mauro Wilton de Souza, foi chamado e recebeu a ordem. Mas – vejam a coragem- ele se recusou a me demitir. Ele reagiu e não obedeceu argumentando que não se demite alguém por causa de suas ideias. Quase que também “dançou” por não se submeter. Detalhe: ele nunca me falou sobre sua atitude destemida. Eu soube depois, por outras pessoas.

Por anos, Mauro foi um dos meus heróis. E ainda é. Acho que os corajosos anônimos e solitários são os mais corajosos.( Mauro Wilton fez carreira docente na USP e foi um dos mais brilhantes diretores da ECA).

Tempos depois, em 1997, no meu primeiro mandato de Deputado Estadual, voltei a enfrentar o meu algoz. O também deputado Coronel Erasmo Dias. Era ele: o mesmo agente da ditadura que naquela noite de setembro de 1977, armado de dois revólveres, um em cada mão, me prendera e ameaçara aos berros: “vou te matar seu comunista filho da puta”. ( comunistas éramos todos: estudantes, professores, padres e freiras, sem exceção).

Era o dia 22 de setembro, 20 anos da invasão da PUC. O Coronel também estava no plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo e me preparei para fazer um pronunciamento. Para comemorar, não a invasão, mas comemorar a nossa vitória.

Sim. Já fazia mais de 10 anos que tínhamos vencido. Milhares de democratas ousaram enfrentar os arreganhos do regime ditatorial, muitos com o preço da liberdade, do exílio e da perseguição. Outros, com os suplícios da tortura e com a própria vida. Falei longamente sobre tudo isso Ao final, da tribuna, encarei o coronel Erasmo nos olhos e disse: SEM ÓDIO, SEM RESSENTIMENTOS, Coronel. Essas coisas são para derrotados. Nós e a nossa causa- a DEMOCRACIA- somos os vencedores!!!.

Vocês perderam. O Brasil já respira a democracia. Uma democracia capaz de respeitar até as suas posições, nobre deputado Coronel.

Claro que ele não ficou quieto. Erasmo Dias não era do tipo de aceitar desaforos, ainda mais de um jovem de esquerda. Esbaforido, ele subiu à tribuna. No plenário fez-se um silêncio de expectativa. Mas, para surpresa geral, ao contrário de um discurso raivoso, pela primeira vez em tantos anos ele reconhecia a brutalidade daquela ação e declarava em alto em bom som o seu arrependimento pessoal. “Para mim, o dia 22 de setembro é um dia triste!. Me arrependo de ter comandado aquela invasão e tudo o que aquilo significava”, exclamou. E terminou arrancando risos e aplausos ao fazer piada de si próprio.

Achei corajoso. Acho mais corajosos aqueles que o são quando não precisam ser.

Ao que se sabe, até o fim da vida o Coronel Erasmo Dias nunca abriu mão de suas ideias. Mas foi capaz de entender o valor do regime democrático e passar a respeitá-lo.

Pena que isso não aconteceu com todos, como estamos vendo nesses tempos de retrocesso.

Sim, fomos vitoriosos ao reconquistar a democracia nos anos oitenta. Mas, apesar de tudo o que fizemos, talvez tenhamos deixado de cumprir todas as nossas tarefas decorrentes daquela conquista. (“…na volta do barco é que sente o quanto deixou de cumprir” -Chico).

A democracia ainda não foi capaz de criar raízes profundas num país de tradição autoritária como o Brasil. A ponto de que um militar reformado, alçado pelo voto à condição de presidente da república, não ter sido capaz de aprender o que parece que o Coronel Erasmo Dias e outros finalmente entenderam: A DEMOCRACIA É UM BEM. UM PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE QUE A TODOS CUMPRE ZELAR E RESPEITAR.

Homenagear a ditadura é um desrespeito, um ato de provocação rasteira impregnado por ressentimentos de ódio, sectarismo, revanchismo e vingança. Provocadores baratos metidos a valentões, em geral, não passam de covardes.

Todavia, que nos sintamos provocados. E que tenhamos a coragem dos anônimos solitários que ousam dizer NÃO. Que nos vejamos instigados a fazer tudo o que ainda precisa ser feito, principalmente a construção de valores fundamentais da democracia pela educação, a cultura e a justiça social.

Já sabemos que não basta resistir: é preciso avançar.

Cesar Callegari

Abril de 2019(55 anos do golpe militar)(33 anos da redemocratização)(3 meses de governo Bolsonaro)

1 comentário em “A DITADURA E DUAS HISTÓRIAS DE CORAGEM”

  1. Estimado Professor Cesar Callegari, escrevo estas linhas, pois o texto de sua autoria “A DITADURA E DUAS HISTÓRIAS DE CORAGEM” me sensibilizou muito. Pois, no ensino médio era atuante do Grêmio Estudantil do Instituto de Educação Olavo Bilac. Ao ingressar com 18 anos via vestibular no Primeiro lugar do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Santa Maria, também me envolvi no Diretório Acadêmico do Curso de Pedagogia na condição de Secretaria. Aos 18 anos participei de um importante evento na USP. Fiquei alojada num campo de futebol da USP. Neste dia os estudantes da USP me contaram que foi ali, naquele campo de futebol que muitos jovens foram presos, algemados, mortos, mordidos por cachorros, violentamente humilhados e feridos. Senti tudo isto quando adormeci naquele local, nas noites que dormi naquele alojamento, tinha medo de dormir em função das imagens que vinha na minha memória. Fiquei imaginando o que jovens como eu, nós, sentiram: medo, dor, raiva… Eles lutaram por mim, pelos meus filhos e netos… Lutaram pela Democracia, para que eu pudesse estar hoje no dia 07/02/2023 podendo me expressar e escrevendo estas linhas carregadas de emoção e gratidão. Quando encontrei você na SEB/MEC na época do PNAIC, não imaginava que você seria este autor que escreve este artigo. Mas depois de quase 6 anos te reencontro no RJ no dia 8/12/2022 no I EVENTO NACIONAL DE AVALIAÇÃO DO PNAIC. Sabia que era por algum motivo muito especial. Estava ao lado de um dos jovens sobreviventes desta violência vivida na USP. O universo é muito sábio,depois de quase 30 anos passados o universo oportunizou o nosso reencontro. É muita gratidão. Quero ainda poder conversar mais sobre este importante fato na história do movimento estudantil. Com carinho e muito reconhecimento pela pessoa e profissional que você é. Um ser humano corajoso que lutou e luta em defesa da democracia. Você me inspira com sua bela trajetória profissional. Com carinho de sua amiga de hoje e sempre Profa Dra Helenise Sangoi Antunes ( PPGE/ UFSM).

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