IBSA – Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada

O DESAFIO DE IMPLEMENTAR A BASE NACIONAL CURRICULAR COMUM

2018

Cesar Callegari[i]

No final de 2017 o Conselho Nacional de Educação aprovou a norma brasileira que institui a Base Nacional Comum Curricular, a BNCC, para o ensino fundamental e para a educação infantil. Com várias mudanças e aperfeiçoamentos em face á proposta original apresentada pelo Ministério da Educação, a Base passa a ser referência obrigatória para a elaboração ou revisão das propostas curriculares das escolas publicas e privadas, tornando-se o principal parâmetro para os cursos de formação inicial e continuada de professores, para a elaboração de livros e materiais didáticos e para os sistemas de avaliação. A Base relativa ao Ensino Médio ficou para ser trabalhada em seguida a partir de proposta específica do MEC. Implementar a BNCC de forma democrática e participativa deve ser um dos principais compromissos dos que forem eleitos no final deste ano de 2018.

A criação de uma BNCC é considerada estratégica para o enfrentamento dos principais problemas educacionais do Brasil, a ponto de se constituir em obrigação legal. Tanto é, que a primeira estratégia relacionada ao atingimento da meta nº 7 do PNE – Plano Nacional de Educação – fomentar a qualidade da educação básica… – indica “a necessidade de se estabelecer e implantar, mediante pactuação interfederativa, diretrizes pedagógicas para a educação básica e a base nacional dos currículos, com direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento dos(as) alunos(as) para cada ano do ensino fundamental e médio, respeitada a diversidade regional, estadual e local”.

Muitos são os fatores determinantes das dificuldades históricas enfrentadas pela educação brasileira. Entre elas, a falta de propostas orientadoras mais claras e objetivas para que educadores e escolas consigam ter uma visão nítida de um projeto curricular para colocar em prática o seu potencial criativo, inovador e encantador, tão necessários para estimular e garantir a aprendizagem dos estudantes. Sem referenciais suficientes e atuando de forma dispersa em meio a baixas condições de trabalho, muitos desses profissionais se sentem isolados em suas salas de aula e não se consideram partícipes de um projeto pedagógico coletivo, não sabem como superar suas deficiências formativas, não conseguem aproveitar todas as possibilidades do material didático à sua disposição e desconhecem ou não sabem como lidar com os resultados das avaliações. Portanto, heroicamente, acabam fazendo o que sabem e o que podem, nem sempre o que é necessário.

O resultado dessas deficiências aí está: mais da metade das crianças brasileiras ainda não sabe ler, escrever e contar depois de três anos frequentando escola, quando todos deveriam estar alfabetizados. Apenas 54% dos jovens conseguem concluir o ensino médio com 19 anos e os que conseguem chegar a esse ponto carregam severos déficits em relação aos conhecimentos esperados e necessários para a continuidade dos estudos ou para sua inserção no mundo do trabalho.

Diante desse quadro crítico e crônico, a existência uma base curricular para a equidade passa a ser considerada estratégica. A Base não é currículo, convém insistir. É uma plataforma mediante a qual os currículos específicos e planos de trabalho de professores, escolas e redes de ensino possam ser elaborados. Portanto, a efetividade da norma depende de que ela seja utilizada como substância para a criação autoral e colaborativa.

A nova BNCC trará impactos importantes em todos os eixos estruturantes do sistema educacional. Entre os eixos estruturantes está a produção de livros e materiais didáticos que ainda apresentam significativos desníveis de qualidade quanto à profundidade de conteúdos, à adequação de suportes tecnológicos e quanto à abordagem metodológica. São os professores e suas escolas que escolhem e encomendam esses livros e materiais, e isso sempre haverá de ser respeitado. Porém essas escolhas devem ser feitas a partir de suficientes elementos de análise e informação. Tendo uma BNCC como referencial, essas decisões podem se tornar mais objetivas e menos desniveladas.

Outro eixo concorrente se refere aos programas de formação inicial de professores. É consenso que entre as principais causas da baixa qualidade da educação do país está o deficiente sistema de formação profissional para o setor. Os diagnósticos convergem apontando que a maior parte dos cursos de licenciatura não forma profissionais suficientemente preparados para enfrentar os desafios do que ensinar e como ensinar.   A BNCC deverá levar a uma revisão das diretrizes curriculares das licenciaturas bem como dos sistemas de avaliação e regulação desses cursos, com vantagens para o sistema educacional.

Ainda no que diz respeito à formação profissional, os professores já formados demandam atualização frequente. Todos os anos as secretarias de educação, sindicatos e outras instituições, organizam uma plêiade de programas de formação continuada e atualização, mobilizando milhões de educadores e bilhões em recursos financeiros. Contudo, no mais das vezes, são ações dispersas e fragmentadas, com baixa repercussão na qualidade de ensino e da aprendizagem. Esses programas podem ser amplamente beneficiados pela existência da BNCC, implicando em atividades formativas mais focadas, objetivas e coerentes com relação aos desafios de implementação do currículo e do projeto educacional da escola.

Quanto ao eixo das avaliações, a BNCC passa a ser um parâmetro para que elas sejam concebidas, efetuadas e interpretadas. E delas derivem todas as consequências para que se monitore a realização da aprendizagem como direito e do ensino como dever.  Ora, o conhecimento sobre o desempenho da escola, órgãos do Estado e da família em face do direito do aluno ao aprendizado é simplesmente indispensável. Assim como é essencial que ele, estudante, possa analisar os resultados do seu próprio esforço em aprender e se desenvolver. Sistemas de avaliação de resultados e de processos são importantes, devem tomar a Base como referencial, mas, de uma vez por todas, se limitar a fornecer subsídios com o cuidado de não induzir o que os professores devem ensinar e o que os alunos devem aprender, como, aliás, vem acontecendo há muito tempo.

No estágio atual de globalização da economia e da cultura, é imprescindível que proposições curriculares brasileiras levem em conta os avanços científicos e tecnológicos em todas as áreas e em todas as partes, incluindo a educação. Da mesma forma, considerem os desafios, inquietações e possibilidades de uma juventude em rede planetária, as mutações nos paradigmas éticos e estéticos da contemporaneidade, os velhos dogmas em cheque e as mistificações em voga, a extraordinária herança de antigas e novas civilizações, bem como os valores decadentes e ideias emergentes em alta velocidade e em escala mundial. Em outras palavras: em que pesem as condições ditadas pelas mazelas da história e da atual conjuntura nacional, é preciso pensar grande para, a um só tempo, enfrentar o passado, lidar com o presente e construir o futuro. É nesse contexto que devem ser assumidas as tarefas de implementação da BNCC: sempre de forma democrática e participativa, nunca nivelando por baixo e valorizando a diversidade como fonte de energia e riqueza. Toda proposta curricular contém elementos do projeto de nação onde valores, sonhos e ambições nem sempre são convergentes, muitas vezes são conflitantes e essa dialética é essencialmente boa e saudável para a sociedade democrática que se deseja construir.

A concretização da BNCC se dará no processo de implementação quando ela, como referencial, passar a ser considerada na elaboração ou revisão das propostas curriculares das escolas e redes de escolas a partir do trabalho crítico e criativo dos professores e demais profissionais da educação; quando passar a ser tomada como referência na elaboração e seleção de livros e materiais didáticos; quando começar a orientar as diretrizes curriculares dos cursos de formação inicial e continuada dos professores; quando se constituir em parâmetro dos sistemas de avaliação; e quando for capaz de pautar o regime de colaboração envolvendo os agentes educacionais em todos os níveis. O que se espera é que esse processo sempre respeite as diferenças, a natureza plural do nosso regime federativo, o compromisso com o projeto democrático de nação, e o principal: que resulte no empoderamento dos professores e suas escolas, jamais no seu enfraquecimento ou anulação.

Legado da maior importância para a atual e para as futuras gerações, essa base curricular necessita ter legitimidade. Parte significativa dessa legitimidade, contudo, vai depender da amplitude, representatividade e intensidade de participação que acontecerá durante a sua implementação. É fundamental que se considere o que já vem sendo construído e praticado no país pela Rede Federal, Estados, Municípios e suas escolas, públicas e privadas, e que se respeite a sua rica diversidade. Como já se disse aqui, muita coisa interessante vem sendo elaborada, testada, reelaborada e aperfeiçoada por educadores e instituições educativas, universidades, institutos de pesquisa e organizações não governamentais, seja no Brasil, seja no exterior. Essa riqueza precisa ser aproveitada com o cuidado de não se reduzir tudo a um raso denominador comum, a um currículo mínimo, muito menos a um currículo único. Claro que são muitas as dificuldades que cercam o sistema educacional. Mas é preciso evitar propostas agachadas sob a régua de nossas atuais precariedades e limites, bem como é necessário combater ideias que preconizam conteúdos meramente instrumentais e utilitários destinados a adestrar meninos e meninas nas técnicas de ler, escrever e contar, como se isso bastasse para o exercício de uma cidadania contemporânea.

Finalmente, um dos cuidados mais importantes: as normas instituidoras dessa Base devem funcionar como um escudo defletor contra dirigismos e preconceitos de qualquer espécie, ainda mais em tempos de fundamentalismos e intolerâncias. Poderá avançar ao sugerir novas formas de organização do tempo, do espaço e do trabalho escolar. Mas haverá de preservar a liberdade de escolha de concepções, abordagens, métodos e estratégias de ensino por parte dos educadores e suas escolas, liberdade que é o esteio da invenção e reinvenção autoral, crítica e criativa do currículo e da própria educação.

De tudo, o que é mais relevante: na execução da ambiciosa tarefa de propor e implementar uma base curricular nacional comum, o país tem uma rara oportunidade de avançar no combate às suas iniquidades, seu atraso e seu subdesenvolvimento econômico, político e cultural, na ousadia de um Brasil verdadeiramente democrático, desenvolvido e socialmente justo.


[i] Cesar Callegari é sociólogo e membro do Conselho Nacional de Educação onde preside a Comissão da Base Nacional Comum Curricular. Foi Secretário de Educação Básica do MEC, Secretário de Educação do Município de São Paulo, Secretário Executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia e Diretor da Faculdade SESI-SP de Educação. É autor de vários trabalhos publicados na área da educação, entre eles “O Fundeb”, Ed. Aquariana, 6ª ed., 2011 e “Ensino Fundamental: a Municipalização Induzida”, Ed. Senac, 1997. É Presidente do Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada – IBSA. (cesarcallegari@uol.com.br)

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